Por Lucas F. C. Simone*
No dia 10 de março de 2022, foi registrado o recorde histórico de carga média diária do Sistema Interligado Nacional (SIN): 80.458 MWméd. Nesse mesmo dia, a demanda máxima horária do SIN alcançou 88.617 MWh/h, maior valor registrado desde o dia 1º de fevereiro de 2019. A demanda máxima horária histórica do sistema segue sendo a do dia 30 de janeiro de 2019, quando o SIN registrou carga de 90.120 MWh em uma única hora[1]. No mesmo dia, a carga média foi de 79.038 MW méd.
Comparando a carga média dos dois dias, verifica-se que em 2022 a carga foi 1,8% superior àquela de 2019. Por outro lado, a demanda máxima horária de 2022 foi 1,7% inferior à de 2019. Essa diferença chama atenção e sugere uma alteração na curva de carga do sistema nos dias em questão. E é o que se constata no gráfico abaixo, que apresenta a curva de carga horária do SIN no dia 30/01/2019 comparada com a do dia 10/03/2022.
Figura 1. Curva de carga horária do SIN
Fonte: elaboração própria com dados do ONS
Nota-se que, apesar da carga no período da noite e começo da manhã em 2022 ter sido superior à 2019, exceto por uma hora (23h), durante o restante do dia (especificamente, das 9h às 16h) a carga em 2022 foi inferior à de 2019. Alguns aspectos podem explicar essa diferença, como o comportamento do clima. Porém, ao comparar-se as temperaturas das maiores cidades do país nesse dia, constata-se que os termômetros marcaram mínimas e máximas relativamente próximas, registrando ligeira diferença em algumas localidades (como Belo Horizonte, Goiânia, São Paulo e Porto Alegre).
Outro aspecto que merece investigação é a inserção de geração distribuída (GD), principalmente na modalidade solar fotovoltaica (GDFV), e seu perfil horário. Nesse quesito, a diferença é mais significativa e ilustra o (potencial) impacto da GD sobre a curva de carga do sistema.
Em 30 de janeiro de 2019, o país contava com 657 MW de GDFV[2]. Em 10 de março de 2022, o país alcançou 9.817 MW de GDFV – um aumento de quase 15 vezes. Partindo dos dados horários de geração solar por subsistema, disponibilizados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), e da capacidade instalada por subsistema, é possível estimar a geração horária de GDFV nas datas em questão. O resultado é apresentado no gráfico a seguir.
Figura 2. Geração horária GDFV - 2019 x 2022
Fonte: elaboração própria com dados da ANEEL e da EPE
De posse dos dados acima, é possível “reconstruir” a curva de carga do sistema, sem a inserção de GDFV, para 2019 e para 2022. O gráfico da Figura 3 apresenta o resultado. Observa-se que, diferente do verificado na operação real, no cenário hipotético, sem a presença da GDFV, a carga do SIN em 2022 estaria acima daquela de 2019 em todas as horas do dia, exceto às 23h. Na média, o aumento da carga diária teria sido de 3,9% e o aumento da demanda máxima horária seria de 2,3%. Além disso, o valor reconstituído para a carga, às 14h, seria um novo recorde histórico: 92.446 MWh/h.
Pode-se notar, ainda, que há um leve deslocamento no horário de pico, das 15h para as 14h. Além disso, aumenta consideravelmente a diferença entre o pico da tarde e o pico da noite (19h). Enquanto na operação real a diferença foi de 1.528 MW, na curva reconstituída a diferença foi de 5.358 MW, implicando num “achatamento” da carga. Essa simples simulação sugere um deslocamento na curva de carga do sistema, em virtude da inserção de GDFV, com importantes implicações operativas e regulatórias.
Figura 3. Curva de carga horária do SIN - sem GDFV
Fonte: elaboração própria
Por fim, buscou-se no histórico operativo recente dias em que a presença da GDFV possa ter deslocado o pico do sistema, do meio da tarde para o final da noite. Possivelmente, esse fato ocorreu no dia 24 de setembro de 2021, quando se verificou demanda máxima horária de 79.513 MWh/h, às 19h. Na curva reconstruída, a demanda máxima, de 80.539 MWh/h, teria ocorrido às 15h, conforme ilustrado pelo gráfico abaixo.
Figura 4. Carga horária SIN - 24/09/2021
Fonte: elaboração própria
Quais as implicações dos impactos da inserção da GDFV na curva de carga do sistema? De forma preliminar, destacam-se duas mais relevantes.
1. Muito se falou nos últimos anos sobre o deslocamento do pico de carga do sistema – do início da noite (18h, 19h) para o meio da tarde (14h, 15h). Essa alteração resulta da mudança nos hábitos de consumo da população e, especialmente, da maior difusão de aparelhos de ar-condicionado, utilizados para refrigeração de ambientes nos momentos de maior temperatura.
A entrada massiva de GDFV nos próximos anos[3] pode alterar (novamente) esse cenário. Nos meses mais quentes, a curva de carga tende a ficar mais “flat”, com os picos no meio da tarde e no início da noite mais próximos – concentrando-se cada vez mais no início da noite. Nos meses mais frios, quando o uso de refrigeração diminui, mantem-se a demanda máxima no início da noite, porém com uma diferença mais significativa em relação ao período da tarde – com tendência de formação da “curva do pato”.
Essa dinâmica da carga implica em desafios operativos, exigindo mais geração flexível – que poderá ser hidrelétrica, ou de térmicas a gás ciclo aberto – para compensar a rápida saída da geração solar do sistema. Daí deriva a importância da criação de um mercado de capacidade no país, “inaugurado” com o Leilão de Reserva de Capacidade de 2021.
Além disso, o sistema de transmissão tende a ser cada vez mais exigido, para fazer essas complementações diárias. Porém, pode-se ter um sistema cada vez mais ocioso, a depender de onde estiver disponível o recurso flexível.
2. Esse novo comportamento da carga torna – ainda mais – urgente a modernização das tarifas de energia. Tarifas monômias, sem diferenciação temporal e geográfica, não refletem adequadamente as exigências e necessidades do sistema. Em outras palavras, nosso modelo tarifário atual não sinaliza, de fato, quanto custa operar o sistema em cada momento do dia e em cada barramento.
Tarifas com baixa discretização, aliadas ao sistema net metering, constituem um ponto “cego” da regulação da GD. Com essa combinação, a GD não é adequadamente remunerada pelos serviços que presta ao sistema – p.e., de achatamento da curva de carga nos meses de maior demanda – e não cobra adequadamente pelo uso do fio – as redes de distribuição são dimensionadas para atendimento do pico e não da média do consumo, funcionando como uma “bateria virtual” para os prosumidores.
Assim, conclui-se que há uma relação significativa entre a operação do sistema e os modelos regulatórios escolhidos para incentivar a GD no país. Além disso, torna-se fundamental a revisão da tarifação de energia – inclusive considerando que a precificação já avançou para o modelo horário, desde 2021. As discussões sobre os impactos da GD estão apenas começando e ocuparão boa parte das preocupações dos órgãos de planejamento e de operação do sistema nos próximos anos, além de exigirem flexibilidade e criatividade por parte do regulador.
*Lucas F. C. Simone é Doutorando do Laboratório de Redes Elétricas Avançadas da Escola Politécnica da USP
[1] No dia 30/01/2019, o SIN também verificou sua demanda máxima instantânea, de 92.150 MW.
[2] A capacidade instalada total de GD nesse dia era de 756 MW, porém para efeitos de impacto sobre a curva de carga do SIN, considera-se aqui apenas a geração solar, notadamente concentrada das 6h às 18h.
[3] O cenário de referência do PDE 2031 é de 37 GW de capacidade instalada GD no país, até o ano de 2031, sendo mais de 90% provenientes da fonte solar fotovoltaica.
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