Por Edson Silva*
Civilizações ancestrais compreenderam a importância e exercitaram com maestria o controle dos rios. No Oriente Médio, em meio a terras áridas e extensos desertos, era possível encontrar áreas extremamente férteis, especialmente às margens de grandes rios, como o Nilo, o Tigre, o Eufrates e o Jordão. Com o passar do tempo, a agricultura foi se aperfeiçoando, a construção de obras se fez indispensável para que fosse possível ampliar a produção de alimentos. Nos tempos atuais, tivemos a construção de barragens para aproveitamento do potencial hidráulico na produção de energia elétrica, e o Brasil é uma referência do emprego de barragens para essa finalidade.
Nas últimas décadas, a expansão da hidreletricidade vem perdendo espaço por conta de pressões socioambientais contrárias e incertezas regulatórias que oneram demasiadamente os novos empreendimentos hidrelétricos, tornando-os menos competitivas no tocante à produção de energia em relação à outras fontes, em especial, eólicas e solares.
Considerando o arcabouço regulatório vigente e a sua possível evolução ao longo dos próximos anos, onde é esperada a ampliação do mercado livre e a maior participação dos consumidores no mercado de energia, haverá um crescimento expressivo das fontes intermitentes centralizadas e das descentralizadas (representadas por painéis solares nos próprios locais de consumo).
Para o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) os desafios serão imensos. No passado, para ajustar, a produção ao consumo, basicamente se consideravam as incertezas sobre o comportamento da demanda ao longo do dia, bem como possíveis falhas de geração e do sistema de transmissão. Agora, mesmo se considerando um perfil típico diário de geração para as eólicas e solares, é preciso ter em contas as variações bruscas e intensas dessas fontes.
Além dessa característica no curto prazo, é preciso lidar com o comportamento sazonal das fontes eólicas que produzem mais durante o período seco hidrológico, o que é favorável para gestão dos recursos disponíveis ao atendimento da carga.
Em síntese, a expansão maciça por meio das fontes intermitentes requer das hidrelétricas o seu nobre atributo de flexibilidade para acomodar as necessidades de despacho do ONS, sendo necessário também um sistema de transmissão robusto que permita a transferência de energia de uma região elétrica para outra.
Também importa considerar nessa discussão que, ao longo dos anos, houve a contratação de energia de reserva para aumentar a segurança energética do Sistema. Contudo, os montantes excederam a real necessidade para cobertura do balanço entre a garantia física real e a carga, o que deve continuar nos próximos anos se considerarmos a autorização para a contratação de termelétricas no total de 8 GW com inflexibilidade de 70%. O efeito dessa contratação adicional de energia de reserva será o deslocamento estrutural e intenso da geração hidrelétrica.
De forma prática, para que as hidrelétricas possam prover essas necessidades de despacho, a forma encontrada é a restrição da própria geração, seja por meio da reserva girante no curto prazo para acomodar variações em tempo real bem como acumular água em seus reservatórios para fazer frente a possíveis períodos de escassez no futuro. Em uma situação ou na outra, a restrição de geração, leva à frustração de receitas e à obrigação de compras de energia para honrar seus contratos de venda.
Tal frustração, se não equacionada, é um desincentivo ao oferecimento da flexibilidade operativa das hidrelétricas. Essa situação implicará novas reclamações por parte delas, podendo ocorrer ações judiciais compensatórias, bem como desestimulará o interesse ou o valor de renovação das concessões de hidrelétricas.
Nesse contexto, a regulação econômica deve avançar para equacionar a frustração de receita dos geradores hidrelétricos, seja em decorrência do deslocamento advindo do despacho da energia de reserva ou para o provimento de reserva girante.
É intuitivo imaginar que a mesma quantidade de energia produzida na madrugada de domingo ou feriado, quando a demanda é menor, tem um valor menor que essa quantidade produzida à noite em um dia regular de semana, em que a demanda é maior. Essa diferença de valor precisa estar refletida adequadamente nos preços de curto prazo, o que não tem ocorrido satisfatoriamente. Atualmente, os preços ao longo do dia excursionam, mas com muita pouca intensidade, não representando a efetiva escassez do recurso para o atendimento da demanda em seus picos.
Sugere-se ainda um sistema de dupla contabilização, com mercados vinculantes, para que as variações de geração e de consumo sejam valoradas apropriadamente. Atualmente, independentemente se a geração (e carga) programada ocorre ou não, o preço é o mesmo fixado ex-ante. Muitas variações de geração, carga e transmissão ocorrem entre a programação diária e a efetiva operação. O cômputo da energia com preços ex-ante e ex-post possibilita a adequada valoração dessas variações entre a programação e a efetiva operação.
Por fim, as regras de mercado alocam todo o risco de sazonalização e modulação às hidrelétricas que fecham o balanço comercial das distribuidoras. Essas regras precisam ser atualizadas de modo que todos os geradores, independentemente de tecnologia, tenham o mesmo tratamento; isto é, perfis de entrega, tipo ponta e fora da ponta, dentre outros, são desenhados e o gerador se acomoda a cada um deles, de acordo com seu apetite ao risco.
A geração hidrelétrica no Brasil, muitas vezes lembrada apenas nos momentos de crise hídrica, permanecerá sendo, não apenas a principal fonte de energia elétrica para o País, mas também o recurso chave que entrega flexibilidade para a operação do sistema, permitindo inclusive a continuidade da expansão sustentável da matriz com fontes eólica e solar. Para tanto, a regulação do mercado de energia deve trazer em seu arcabouço mecanismos regulatórios e de mercado, tais como os sugeridos aqui, que garantam uma remuneração justa para as usinas hidrelétricas.
* Edson Luiz da Silva é presidente de Jirau Energia e Membro do Comitê Executivo da Engie
O conceito de valor é muito discutível, dessa maneira dificulta aos pensadores encontrarem um consenso por conta das diversas escolas as quais vinculam os seus pensamentos.
Mas aqui cabe uma análise entre os conceitos de valor do ponto de vista filosófico e econômico que devem ser levados muito em consideração na regulação desse mercado.
Para garantir uma remuneração justa para as usinas hidrelétricas, considerando que a energia elétrica é um insumo muito importante para a transformação de toda uma sociedade, o que deve ser levado em consideração?
Eu que sou um profissional da indústria, sei que não dá para resolver essa situação em momentos de crise hídrica, uma vez que nesses momentos faltam águas em nossos rios "para apagar fogo"…