Por Victor Ribeiro da Thymos Energia
Em The double helix, livro escrito por James Watson, o autor narra a sua versão sobre a descoberta do modelo de dupla hélice do DNA - um dos eventos científicos mais importantes do século passado. A descoberta da estrutura do DNA foi um marco fundamental para a genética molecular pois pavimentou pesquisas que auxiliaram a compreensão sobre como as informações genéticas são armazenadas e transferidas para as gerações seguintes.
Embora esse evento tenha sido fundamental para a ciência, ele contém um triste capítulo: Rosalind Franklin, uma das pesquisadoras do projeto, foi a primeira a decifrar a estrutura em hélice do DNA, porém, o resultado da sua pesquisa foi roubado por um colega de laboratório, Maurice Wilkins, que a entregou para a dupla de pesquisadores - James Watson e Francis Crick - vencedores do Prêmio Nobel de Medicina de 1962 ao lado de Wilkins.
Rosalind faleceu de câncer, com apenas 38 anos, em 1958, 4 anos antes de seus colegas serem laureados com o Prêmio Nobel de Medicina, sem saber da importância da sua descoberta e sem ter tido a oportunidade de reivindicar a coautoria no estudo. Dentre tantas outras mulheres que tiveram seus méritos científicos apagados, Rosalind Franklin talvez seja a personagem mais desmerecida na história da ciência: teve papel crucial em uma descoberta que mudou o paradigma da biologia, mas nunca recebeu crédito pelo seu trabalho fundamental que exerceu.
Mas o que esse assunto tem a ver com o tema de energia elétrica? Na verdade, apelidei de Efeito Rosalind para o que vem acontecendo com a precificação dos serviços ancilares no Brasil – e que comento a seguir, ao longo desse artigo.
Mas antes é necessária uma breve explicação sobre o que são os serviços ancilares. Os serviços ancilares são fundamentais para manter a segurança e a estabilidade dos sistemas elétricos, e por isso, beneficiam todos os seus usuários. Embora sejam coadjuvantes dos produtos principais - energia e potência, são fundamentais para o bom funcionamento dos sistemas elétricos, pois auxiliam nos seguintes procedimentos:
i. variação de tensão e frequência dentro dos limites aceitáveis;
ii. operação dos equipamentos dentro de faixas normais;
iii. operação com alto grau de confiabilidade;
iv. operação em emergências sem grandes alterações para os usuários;
v. operação adequada sob várias condições diárias de carga.
Em outras palavras, para que a energia elétrica chegue aos consumidores no padrão correto de qualidade, é necessário que ela seja “embalada” por procedimentos operacionais realizados, principalmente, por empreendimentos de geração. As usinas que prestam esses serviços de “embalagem” da energia elétrica são signatários de contratos denominados de Contrato de Prestação de Serviços Ancilares (CPSA) celebrados com o Operador Nacional do Sistema (ONS). Atualmente, a vasta maioria dos serviços ancilares vem sendo prestado ao Sistema Interligado Nacional (SIN) pelas hidrelétricas.
Os Serviços Ancilares são regulamentados pelas Resolução Normativa Aneel nº 697, de 16 de dezembro de 2015 e Resolução Normativa nº 822, de 26 de junho de 2018. Adicionalmente, os detalhes operacionais são especificados no submódulo nº 3.11 do Procedimento de Rede do ONS. Os principais serviços ancilares prestados pelas hidrelétricas são:
Autorrestabelecimento integral;
Autorrestabelecimento parcial:
Controle primário de frequência;
Controle secundário de frequência; e
Suporte de reativos.
Para a produção dos serviços acima, as hidrelétricas têm acréscimo em seus custos de operação e manutenção. Além disso, em muitos momentos as hidrelétricas precisam reduzir a sua produção de energia elétrica para fornecer os serviços ancilares. Merece destaque, dentro do serviço (5) supra, as unidades geradoras que sejam solicitadas a operar como compensador síncrono, devidamente preparadas para esse fim. Essas unidades geradoras fazem jus à remuneração pela Tarifa de Serviços Ancilares (TSA).
Ocorre, que a partir do ano de 2010, devido ao acréscimo da penetração das fontes renováveis intermitentes (eólica e solar), o perfil de operação do SIN mudou, passando a ter forte aumento fortemente o despacho das hidrelétricas no formato de liga-desliga e para a prestação de suporte de reativos operando como compensador síncrono. Para se ter uma ideia dessas mudanças, coloca a seguir alguns números:
O índice de penetração eólica no Nordeste no ano de 2019 foi de 52%. O índice de penetração é calculado por meio da razão entre o total gerado por usinas eólicas em um subsistema elétrico e o montante total de geração no mesmo subsistema elétrico. Para ter uma ideia, de quão elevada é a penetração eólica no Nordeste, os países que lideram ranking mundial nesse indicador são a Dinamarca (48%), seguida de Irlanda (33%), Portugal (27%), Alemanha (26%), Grã-Bretanha (22%), Austrália (16%) e EUA (7%). Em outras palavras, se o sistema nordeste brasileiro fosse um país, estaria liderando o ranking mundial de penetração eólica;
O principal agente de geração hidrelétrica no SIN foi chamado pelo ONS para operações liga-desliga em 7.182 eventos no ano de 2021. No ano de 2015 esses chamados eram em torno 2.000 eventos.
O principal agente de geração hidrelétrica fornecedor do serviço de compensação síncrona foi chamado a operar 2.342 vezes no ano de 2021. Em 2009, esses pedidos do ONS eram em torno de 9 eventos.
Ocorre, que apesar do aumento da frequência em que os geradores hidrelétricos vêm sendo chamados para cumprir esses eventos, a remuneração por esses serviços ou é inexistente ou é extremamente defasada. Os agentes de geração hidrelétrica atualmente não recebem pelas operações liga-desliga e a TSA encontra-se extremamente descolada dos custos reais para a prestação dos serviços ancilares.
A Consultoria Thymos Energia apresentou relatório à Consulta Pública Aneel nº 83/2021 expondo que, por exemplo, nos casos supracitados, o agente de geração deveria receber cerca de R$ 23 milhões de reais apenas para compensar os desgastes dos equipamentos nas operações liga-desliga (atualmente não recebem remuneração por esse serviço). E com relação ao serviço de compensação síncrona, a remuneração deveria ser quatro vezes maior apenas para cobrir os desgastes e os custos de oportunidade da hidrelétrica.
Adicionalmente, a Thymos Energia apresenta o cálculo do indicador Benefício Social, em que aponta que a remuneração do serviço de compensação síncrona é tão baixa que o benefício do acréscimo de confiabilidade trazido por esses serviços ao sistema elétrico fica 92% com o SIN e apenas 8% com o agente de geração hidrelétrico, Os detalhes encontram-se neste link.
Enfim, face ao todo exposto, apelidei de Efeito Rosalind Franklin a atual história da remuneração dos serviços ancilares no Brasil prestadas pelas hidrelétricas. As hidrelétricas prestam um serviço de confiabilidade invisível, não reconhecido e não remunerado. É urgente a revisão da remuneração dos serviços ancilares no Brasil.
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