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  • Igor Pereira Oliveira e João Bortotti

Direito contratual, segurança energética e modicidade tarifária: o caso do Procedimento Competitivo


Preservar a continuidade e a segurança do suprimento eletroenergético aos consumidores do Sistema Interligado Nacional (SIN), em face de riscos de desabastecimento decorrentes da crise hídrica e da redução no nível dos reservatórios ocorridas de 2020 a 2021. Esse foi um dos objetivos da criação emergencial da Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética – CREG, por meio da MP 1.055, de 28/06/21, permitindo a articulação entre 6 Ministérios distintos (MME, ME, MInfra, MAPA, MMA e MDR).


Nesse contexto, a CREG editou a Resolução nº 04, de 09/09/2021, determinando a realização do Procedimento Competitivo Simplificado (PCS nº 01/2021) para contratação emergencial de reserva de capacidade, conforme diretrizes definidas pelo Ministério de Minas e Energia (MME) – o que se deu pela Portaria MME nº 24, de 17/9/2021.


Com o fim da vigência da MP 1.055/21, a CREG foi formalmente dissolvido, mas todas as medidas emergenciais produziram seus efeitos, os quais são válidos e seguem vigentes. A incumbência de fazer cumprir os respectivos direitos e obrigações recai sobre os respectivos entes setoriais.


Nesse contexto, no exercício de suas atribuições, as interações do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as medidas adotadas pelo CREG no setor elétrico têm se concentrado no MME, destinatário de recomendação para a adoção das medidas estruturais para enfrentamento à crise hidroenergética, com a realização de prévia análise de alternativas e seus custos (e consequentemente dos impactos tarifários), baseada em estudos, evidências e análises, dando cumprimento a diversos dispositivos legais (Acórdão 1567/2022-Plenário) – inclusive dando maior ênfase às medidas pelo lado da demanda, em complemento àquelas voltadas para a oferta de energia.


Em sequência, houve Representação no TCU, de autoria do Governador do Estado de Santa Catarina, cujo objeto foi o PCS nº 01/2021. No vocabulário de controle externo, a Representação corresponde a provocações dirigidas aos Colegiados ou aos Relatores acerca de irregularidade, ilegalidade ou omissão verificada em assuntos de competência do Tribunal.


A propósito, o PCS nº 01/2021 já havia sido questionado no âmbito judicial. Contudo, a Advocacia Geral da União (AGU) conseguiu derrubar liminar que poderia impactar a segurança energética do país [i].


Ao avaliar o pedido de cautelar contido na Representação, o relator do caso no TCU considerou o perigo da demora reverso, ou seja, as repercussões que eventual medida poderia ter no próprio risco de abastecimento que motivou a realização das contratações.


Em decisão recente, o Acórdão 2699/2022-Plenário (TC 001.722/2022-0), ante as razões expostas pelo relator, fixou prazo ao MME para que seja feita avaliação individualizada e conclusiva dos contratos decorrentes do PCS, comparando-se as vantagens e desvantagens quanto às possibilidades de sua manutenção, rescisão ou solução negociada, indicando objetivamente a melhor opção para cada contrato, considerando o impacto nas tarifas no curto, médio e longo prazos e a segurança do fornecimento de eletricidade, levando-se em conta, também, alternativas que possam substituir o aumento de oferta de energia e potência previsto nos instrumentos.


O voto do Relator considerou que atrasos não motivados por fatos supervenientes e riscos alheios aos assumidos pelas geradoras podem ensejar a rescisão das avenças, trazendo alívio tarifário e um cenário mais favorável, em que parte da energia contratada não tem que ser adquirida.


“(...) além da possibilidade de solução amigável, existem no edital (peça 9) algumas condições de resolução contratual, no que cito o atraso superior a noventa dias para entrada em operação comercial das usinas, já verificado, como expus, em diversas geradoras, já devidamente notificadas. Há, ainda, em princípio, a possibilidade de rescisão, com ônus de perdas e danos e penalização pecuniária, a ser potencialmente ponderada, comparando-se financeiramente se tal montante poderia ser inclusive inferior à diferença de custo da energia no PCS comparada com o de outros contratos, inclusive leilões novos a serem licitados ainda em 2022.”


Já o voto revisor discordou do raciocínio:


“(...) discordo que as rescisões sejam caminho para “alívio tarifário”. A garantia de fornecimento deve ser a maior prioridade do planejamento energético bem como da Aneel na condição de executora. A decisão pelas rescisões é de competência exclusiva da Aneel e deve ter motivação, fundamentação jurídica idônea e juízo de conveniência, bem como a responsabilidade de seu respectivo impacto no planejamento estratégico de abastecimento energético. Admitir ou até mesmo sugerir que a Aneel utilize a rescisão dos contratos como forma de se buscar “alívio tarifário” colocaria este Tribunal mais uma vez como cúmplice dos erros cometidos pelos gestores, sem falar do risco de incorrer em desvio de finalidade do ato.”


Em voto complementar, o Relator esclareceu que seu raciocínio se concentra na possibilidade de “alternativa contratual ou consensual, considerada a segurança energética, a modicidade tarifária e os direitos dos contratados, inexistindo prejuízo provável e dada motivação razoável”. Além disso, ressaltou que possível inércia do MME levaria o Tribunal a usar “fortemente o seu ferramental investigativo e punitivo”.


É importante notar, da perspectiva do MME, que entre 28/10 e 28/11/2022 foi realizada a Consulta Pública nº 139 (CP MME 139/22), cujo objeto foram justamente “as diretrizes e condições para a resolução amigável dos Contratos de Energia de Reserva - CER firmados em decorrência do PCS nº 01/2021”. A Nota Técnica nº 24/2022/SE, de 27/10/2022, expôs como fundamento as manifestações do TCU contidas no Acórdão 1567/2022 e no Relatório de Auditoria TC 001.722/2022-0.


Dentre as contribuições apresentadas, verificam-se manifestações de representantes dos vendedores do PCS nº 01/2021, consumidores, distribuidores e demais agentes do setor elétrico – de modo geral, bastante em linha com as considerações apresentadas pelo TCU no Acórdão 2699/2022.


No fortalecimento da governança do setor, é essencial a discussão de medidas estruturais para questões específicas (seja para uma crise hídrica, aumento do papel da demanda, mecanismos de compartilhamento de riscos etc). É atribuição do TCU zelar para que as normas estabelecidas sejam observadas, em prol do fortalecimento das instituições que fiscaliza e do planejamento das políticas públicas, conforme se denota do voto do Acórdão 1567/2022:


No que tangencia o estrito teor do encaminhamento, em simplificação, deseja-se guiar o Ministério para a implantação de um relatório de "lições aprendidas", de sorte a mapear eventos, oportunidades, ameaças, causas, efeitos e, principalmente, respostas advindas das experiências então vivenciadas.


O "relatório de lições aprendidas", na realidade, é providência padrão nas "gestões de crise". Considerando que as medidas de enfrentamento devem ser planejadas, executadas, controladas, analisadas e monitoradas - com todos os elementos de um projeto típico - aplicam-se a elas também as práticas consagradas da teoria de "gestão de projetos" (tomando como referência, por exemplo, o consagrado PMBOK - Project Management Body Of Knowledge, editado pelo renomado PMI - Project Management Institute). E as "lições aprendidas" enfileiram-se às demais prudências recomendadas no relatório final de qualquer projeto, gerando conhecimento para o planejamento de futuras empreitadas ou mesmo outras crises. (...)


Conclui-se por um melhor planejamento para o enfrentamento das próximas crises que hão de vir, tornando-se essencial investigar os riscos e as causas estruturais e conjunturais que foram determinantes para o agravamento da situação atual. Tal análise auxiliará na implementação do plano estratégico de contingência (já proposto), de sorte a possibilitar maior previsibilidade na atuação governamental na tomada de decisões, com maior razoabilidade, eficácia e eficiência.


(...) A maior agregação de valor fruto de nossas fiscalizações, em sua atuação constitucional de viés operacional, é a de diagnosticar os problemas, resultados, estratégias e respectivo controle das ações governamentais, inclusive sobre a eficiência, a eficácia, a efetividade e a economicidade dos processos e tomadas de decisão; mas sempre por critérios objetivos e indicadores confiáveis, estabelecendo um processo de comunicação franco e objetivo tendente ao aperfeiçoamento governamental. (...) (grifo nosso)


Importante observar que a “santidade dos contratos” continua sedo respeitada por todos os participantes das discussões, ao mesmo tempo em que se exige seu estrito cumprimento. Ainda que uma rescisão unilateral com o pagamento das devidas penalidades seja perfeitamente legal, é medida que pode aumentar a percepção de risco para investimentos no setor, o que, por sua vez, certamente é levado em conta em uma análise de conveniência pelo Poder Público.


Além disso, apesar das medidas para rescisão por descumprimento terem sido iniciadas em agosto/2021 [ii], há discussões judiciais e arbitrais em andamento (vide processo judicial 1105523-09.2022.8.26.0100, p.ex.) sobre eventual incidência de excludente de responsabilidade por parte do gerador.


Finalmente, a “negociação bilateral" (resultando tanto no encerramento quanto na alteração dos termos do contrato) com os geradores que cumpriram suas obrigações depende, obviamente, tanto do devido enforcement das previsões vigentes quanto de efetivo benefício para ambas as partes. Um dos resultados que a CP MME 139/22 pode trazer é, justamente, permitir a identificação, avaliação e adoção de alternativa(s) para revisar os contratos, com resultados que gerem benefícios tanto para os consumidores (com redução das tarifas) como para os geradores.



** Eventuais opiniões são pessoais e não expressam posicionamento institucional do TCU.


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