Em uma vila não tão distante
Imagine que em uma determinada vila existiam 10 Produtores de Alface (PA), 10 Consumidores de Alface (CA) e 1 Órgão Coordenador da Produção de Alfaces (OCPA).
Sabendo que cada CA consome 240 alfaces por ano, foi fechado um acordo entre as partes em que cada PA deveria entregar 240 alfaces ao ano sob coordenação do OCPA a fim de atender toda a demanda da região. Caso o produtor não conseguisse entregar o acordado, ele seria penalizado.
Por bastante tempo a dinâmica funcionou: os PAs produziam a quantidade acordada, o OCPA coordenava as produções observando quem podia produzir mais ou menos alfaces mês a mês e os CAs tinham suas alfaces corretamente a mesa.
Entretanto, com o passar dos anos a região passou por grandes mudanças. Isso porque a quantidade de PAs aumentou consideravelmente, as estradas da região que antes comportavam a malha de transporte passaram a ficar frequentemente sobrecarregadas e o número de CAs pouco cresceu. Adicionalmente, muitos CAs começaram a produzir suas próprias alfaces em casa. Ocorre que algo se manteve inalterado: os contratos firmados com a exigência de entrega das 240 alfaces anuais de cada PA.
Quais os problemas gerados a partir disso?
a) No cenário inicial, existia um equilíbrio de oferta e demanda, onde a quantidade necessária de entrega de alface era factível de se atingir por cada PA. Caso as alfaces de fato não fossem entregues, muito possivelmente seria por algum fator de responsabilidade do próprio PA. Agora, com muito mais produtores, com baixo crescimento de CAs e com um consumo líquido reduzido (por muitos produzirem suas próprias alfaces), é preciso que cada PA entregue menos alfaces individualmente para que cada CA esteja satisfeito. Nesse cenário, o OCPA é obrigado a solicitar a cada PA que reduza sua produção mesmo que fossem capazes de produzir mais.
b) Com o aumento do número de caminhões nas rodovias, dois problemas se intensificaram: i. manutenções e ii. congestionamentos. Novamente, mesmo que os PAs pudessem produzir suas alfaces, o OCPA é obrigado a solicitar reduções aos produtores para realizar as manutenções necessárias e para diminuir os congestionamentos nas estradas.
Diante desse cenário, surgem alguns questionamentos:
É justo que os PAs sejam penalizados por não entregarem as 240 alfaces anuais porque foram solicitados pelo OCPA a reduzir suas produções – apesar de comprovarem que podiam produzir?
É justo que os CAs, apesar de já estarem satisfeitos (via aumento da oferta e da produção própria), continuem pagando pelas 240 alfaces que contrataram anteriormente?
Até que ponto cada uma das partes pode ser responsabilizada?
O potencial de produção de cada PA deve ser definido como a capacidade real de produção alfaces ou de acordo com as alfaces efetivamente entregues?
O cenário acima descrito, é uma alegoria do que hoje vivemos no setor elétrico, dado o cenário energético favorável (ótimos níveis dos reservatórios e intensa expansão das fontes renováveis pós “corrida do ouro” (Nota 1) causada pela Lei 14.120/2021 [1] e da redução de consumo por conta do crescimento da Geração Distribuída.
Como consequência, as restrições aos agentes de geração (constrained-off), em especial aos localizados no Nordeste, são cada vez mais constantes e severas, deixando-os sob diversos riscos mesmo quando estão aptos a gerar.
A temática do constrained-off tem causado grandes discussões no setor desde a criação da regra, passando de quem tem direito a ser ressarcido, a valores do ressarcimento, de responsabilidades contratuais e de revisões de garantia física das usinas. Portanto, devemos olhar com urgência este tema, a fim de endereçar corretamente as responsabilidades, direitos e riscos de cada parte.
Constrained-off para fontes eólicas e solares – REN 1.030/2022
As regras de constrained-off para fontes eólicas e solares estão consolidadas na REN 1.030/2022 [2] e classificam as restrições de geração da seguinte forma:
i. Indisponibilidade Externa: quando equipamentos da rede de transmissão estão fora em períodos de manutenções (nosso exemplo de manutenções nas estradas).
ii. Confiabilidade: quando os equipamentos de transmissão atingem sua capacidade máxima de escoamento (nosso exemplo de congestionamento das pistas).
iii. Energética: quando não há demanda a ser alocada na geração (nosso exemplo de CAs já satisfeitos).
De acordo com o regramento vigente, os agentes impactados pelas restrições de geração somente serão ressarcidos passado uma determinada franquia (Nota 2) de tempo do caso de Indisponibilidade Externa (manutenções). Este entendimento da Agência parte do pressuposto que o agente gerador, ao conceber sua usina, sabe de antemão que:
i. O sistema de transmissão permanece períodos em manutenção, devendo o gerador ser ressarcido somente em casos acima da franquia.
ii. Os equipamentos e linhas de transmissão possuem limitações físicas de operação para operarem sem gerar riscos ao sistema.
iii. Existem variações naturais de demanda, sendo um risco de mercado.
Constrained-off e o impacto na Revisão de Garantia Física
As regras de revisão de garantia física (GF) de usinas eólicas e solares são definidas pelas PRT 416/2015 [3] e 060/2020 [4], respectivamente, e utilizam as gerações verificadas passadas das usinas como base para revisar as GFs. Quando o resultado da nova GF calculada ultrapassa algum dos limites para revisão, a GF é revisada.
Desse modo, como pode-se imaginar, o constrained-off impacta diretamente no principal dado de entrada da regra de cálculo, acarretando algum dos 4 cenários da Figura 1 abaixo:
Figura 1: Cenários dos impactos do constrained-off nas revisões de Garantia Física
Fonte: Elaboração própria
Em dezembro de 2022, o Ministério de Minas e Energia (MME) havia publicado a PRT 1.851/2022, revisando a garantia física dos empreendimentos eólicos em operação comercial. De imediato, a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) protocolou com um recurso administrativo contra a referida portaria justificando que as revisões publicadas não refletem o real potencial de geração das usinas visto não considerar todos os eventos de constrained-off sofridos pelas usinas nos últimos anos.
Na última semana, o recurso foi julgado e aprovado pelo DSP nº 012/2023 [5] e através da PRT 2.634/2023 [6] as usinas que sofreram reduções de GF retornaram às suas GFs anteriores.
Henrique Granato Travalini é engenheiro eletricista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestrando em Planejamento de Sistemas Energéticos na UNICAMP e aluno da Head Energia.
Notas:
1. O artigo 4º da Lei 14.120/2021 estabeleceu regime transitório para que novos projetos de geração pudessem usufruir dos descontos nas Tarifas de Uso dos Sistemas de Transmissão e Distribuição (TUST/TUSD). Tal requisito legal impulsionou uma corrida dos agentes a solicitarem novas outorgas de geração, totalizando mais de 200 GW de capacidade instalada de solicitações.
2. Para a fonte eólica, a franquia no ano de 2021 foi de 78h, em 2022 de 59h e em 2023 em 61h. Já para a fonte solar, a franquia em 2023 é de 30h.
Referências:
[1] Lei 14.120, de 1º de março de 2021
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14120.htm.
Acessado em: 24 de outubro de 2023.
[2] Resolução Normativa 1.030, de 26 de julho de 2022 https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren20221030.pdf.
Acessado em: 24 de outubro de 2023.
[3] Portaria 416, de 1º de setembro de 2015
https://www2.aneel.gov.br/cedoc/prt2015416mme.pdf.
Acessado em: 24 de outubro de 2023.
[4] Portaria 060, de 21 de fevereiro de 2020
https://www2.aneel.gov.br/cedoc/prt2020060mme.pdf.
Acessado em: 24 de outubro de 2023.
[5] Despacho Decisório nº 12/2023/SNTEP
https://www2.aneel.gov.br/cedoc/dsp2023012sntep.pdf
Acessado em: 24 de outubro de 2023.
[6] Portaria 2.634, de 9 de outubro de 2023
https://www2.aneel.gov.br/cedoc/prt20232634sntep.pdf
Acessado em 24 de outubro de 2023.
Comments