Por Luan Vieira*
A frase “Conhece-te a ti mesmo”, que resiste até os dias atuais, é um princípio fundamental da Grécia antiga e muito atribuída a Sócrates. Não importa muito se foi ele mesmo quem disse; o que importa é o que ela representa, ou seja, uma busca ininterrupta pela virtude e sabedoria. A ideia aqui é a seguinte: quando você se conhece, entende suas potências e fraquezas, e, portanto, consegue trabalhá-las para ser a melhor versão de si mesmo. Não tenho certeza de que podemos ser a melhor versão de nós mesmos, mas sei que o autoconhecimento ajuda a não cometer os mesmos erros nos mesmos lugares, e isso, por si só, é muito valioso.
Parte de conhecer a si mesmo é conhecer a própria história. A princípio, parece fácil, pois, se nós vivemos, sabemos. Porém, trazer da memória para o presente não é uma tarefa tão simples. Basta lembrar: quantas vezes nos flagramos em relacionamentos que repetem os nossos traumas? (Freud explica). Então, se já é difícil para um indivíduo realizar esse exercício, imagine uma nação inteira? A consciência coletiva é o conjunto de crenças e valores comuns que unem os membros de uma sociedade. Assim, todos nós, como brasileiros, partilhamos a mesma história: todos carregamos, em algum lugar subjetivo do nosso ser, as capitanias hereditárias, a escravidão, a República Velha/Nova, a ditadura, o carnaval, o penta, o Boi-Bumbá, o acarajé; enfim, o Brasil está em nós porque nós somos o Brasil.
Ter consciência da nossa história como brasileiros nos permite entender quem somos, mas, acima de tudo, quem fomos e quais erros cometemos. A esperança é que, se trouxermos essa memória para o presente, não voltaremos a cometer os mesmos erros nos mesmos lugares. A verdade é que esse raciocínio pode ser utilizado em qualquer área da vida. Como sou engenheiro eletricista e analista regulatório, vou restringir a discussão para quem são os brasileiros no aspecto do setor elétrico. Ou seja, é a nossa história que determinou uma matriz majoritariamente renovável. É ela que nos proporcionou uma das energias mais baratas do mundo, porém, com uma das tarifas mais caras. Conhecer a história é o começo do caminho para não perpetuá-la ou repeti-la.
Tudo começou pouco depois que Thomas Edison criou a lâmpada incandescente e exibiu sua criação nos Estados Unidos. O ano era 1879, época do Brasil Império. D. Pedro II ficou encantado com a invenção de Edison e concedeu-lhe a permissão de implementá-la no Rio de Janeiro. O imperador era conhecido por sua postura moderada e intelectual, tendo notório destaque por sua busca de modernizar o país. Campos dos Goytacazes, no norte do estado do Rio, recebeu o primeiro serviço de iluminação pública do Brasil e da América do Sul.
Em 1889, o Império perdeu força política e econômica, entrando em uma crise de legitimidade. Então, houve a declaração da República Federativa do Brasil, com Deodoro da Fonseca sendo o primeiro presidente da República, dando início ao período café com leite, ou República Velha. Nesse período, iniciou-se a versão embrionária do setor. Com a expansão das cidades e o desenvolvimento industrial, surgiram as primeiras empresas privadas de geração e distribuição de energia elétrica, muitas delas com capital estrangeiro, como a Light & Power Company, fundada em 1899 por investidores canadenses e estabelecida em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Nessa época, praticamente não havia regulação no setor. A crise de 1929, ou a “Grande Depressão”, fez os preços do café despencarem. Como este era o principal produto de exportação do Brasil, a crise econômica se intensificou, resultando no fim do regime e no início da Era Vargas. Durante esse período, iniciou-se a regulamentação e ampliação do Estado no setor energético, tendo como plano de fundo uma política mais nacionalista. A Era Vargas foi um período ímpar na história do Brasil, com a criação do voto universal, da CLT, da Petrobras, entre outros avanços. Isso fez de Getúlio Vargas o político mais populista da história nacional. Mesmo assim, durante sua segunda passagem na presidência, a tentativa de manter uma política protecionista e nacionalista, vinculada ao contexto mundial pós-guerra, fez com que ele fosse muito pressionado pela mídia e pelos militares. Em 1954, Vargas deu um tiro no próprio peito como forma de resistência, deixando uma carta ao povo que encerra com a frase: “Saio da vida para entrar para a história.”
O acontecido gerou uma grande comoção popular, intensificando ainda mais a crise política e econômica no Brasil. Foi nesse contexto que o presidente Juscelino Kubitschek foi eleito. A principal intenção de JK para recuperar e impulsionar a economia brasileira era promover um crescimento econômico acelerado baseado na industrialização, no desenvolvimento da infraestrutura e na integração nacional. Apresentou o Plano de Metas, com 30 metas para setores estratégicos. O setor elétrico estava entre essas metas e, nessa época, foi desenvolvida uma infraestrutura de distribuição e iniciada a construção das grandes hidrelétricas Furnas e Três Marias. Além disso, em 1960, criou-se um dos ministérios mais antigos da República: o MME (Ministério de Minas e Energia).
No ano seguinte, Jânio Quadros foi eleito. Sua postura rígida de fazer política via decretos não agradou. Tentou recuperar a economia via corte de gastos e austeridade fiscal, sem sucesso. Como resultado, renunciou ao cargo em 1961, seu vice João Goulart assumiu, houve uma resistência e um período de parlamentarismo no Brasil. Em meio a esse caos político foi criado a estatal Eletrobras, idealizada por Vargas, com a atribuição de promover estudos, projetos de construção e operação de usinas geradoras, linhas de transmissão e subestações destinadas ao suprimento de energia elétrica do País. Antes da Eletrobras a geração e a distribuição de energia eram realizadas por empresas privadas e estaduais, mas o sistema enfrentava baixa eficiência, passando por apagões e crises de abastecimento. A criação da Eletrobras foi um passo crucial para o desenvolvimento do setor elétrico no Brasil, viabilizando um planejamento de longo prazo, expansão e coordenação do setor.
Apesar do avanço no setor com a criação da Eletrobras, a postura do Jango meio ao contexto de guerra fria desagradou alas conservadoras da política. Jango era herdeiro político de Vargas, tendo como diretriz o mesmo populismo. Suas propostas – como reforma agrária – desagradaram a elite e militares, culminando no golpe de1964. Jango decidiu não resistir para evitar uma guerra civil, optando pelo exílio no Uruguai. O regime militar, por sua vez, foi pautado por uma política positivista e desenvolvimentista que culminou em mais uma expansão do estado no setor elétrico. Foram investimentos massivos em expansão e geração, tendo Itaipu como o grande exemplar desse período. Nesse contexto, um setor que era estritamente privado, se tornou 98% público.
Nos anos 80, o regime autoritário começou a ruir, perdendo apoio popular e poder político por conta da inflação. Para ilustrar esta situação, em 1984, a inflação anual do país registrou uma alta acumulada de 215,27%. Nesse cenário, houve uma crise na estrutura desenvolvimentista do regime e com ela uma crise no setor elétrico. Em 1985, com o início do governo Sarney, iniciava-se a redemocratização e a transição entre o modelo intervencionista militar para o neoliberal. Não houve grandes avanços nessa época, pois a crise política e econômica estava tão profunda e severa que ela se estendeu até pelo menos a criação do plano Real.
Foi só então no governo Fernando Henrique que a onda neoliberal ocorreu, nos anos 2000, cerca de 70% da distribuição de eletricidade do país já se encontrava nas mãos da iniciativa privada. Porém, importante ressaltar que 48% dos recursos oriundos das vendas das empresas do setor elétrico tiveram como origem o dinheiro público, seja por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a título de empréstimos, seja pela intensa participação dos fundos de pensão de empresas públicas nas privatizações. É nesse período que muito do setor que conhecemos foi criado, com a criação da Lei 9.074 em 1995, novo modelo do setor elétrico, permitiu que alguns consumidores contratassem energia de produtores independentes. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) surgiu em 1996, e o Operador Nacional do Setor Elétrico (ONS), foi criado em 1998.
Em 2001, apesar da corrente modernização no setor, a combinação de uma hidrologia ruim com pilares de investimentos ainda instáveis levou o sistema a um gargalo de atendimento energético (o sistema era 98% dependente das hidrelétricas), forçando o governo brasileiro a anunciar uma crise hídrica e consequente racionamento. Foi um período bastante traumático, impactando a produção industrial e o consumo de milhões de pessoas, com cobertura massiva pela mídia, onde muito se atribuiu a falta de planejamento do governo, ao ponto de ter influenciado nas eleições presidenciais de 2002. Com Lula eleito, iniciou-se a era petista e, com o diagnóstico da necessidade de prover maiores garantias para os investimentos de longo prazo no setor, uma onda de reforma do sistema interligado nacional baseada em novos pilares. Através da diversificação da matriz elétrica e expansão baseada em leilões de longo prazo, com a criação do PROINFA em 2002 e da Energia de Reserva em 2004. Com o objetivo de reestruturar o setor elétrico, criou-se o Novo modelo do Setor Elétrico Brasileiro, viabilizado pela Lei 10.848/2004 com a divisão do mercado em dois ambientes, sendo o ambiente livre aquele que o consumidor pode negociar energia livremente de forma bilateral e o regulado, ou cativo, aquele compulsório, ou seja, o consumidor está submetido as tarifas reguladas da distribuidora da sua zona de concessão.
As tarifas de energia estão vinculadas aos preços dos leilões, onde as distribuidoras compram energia e as geradoras oferecem sua energia a preços competitivos. Estes leilões foram viabilizados pelo novo modelo, se dividindo em Energia Nova, Energia Existente, Energia de Reserva e Energia Estruturantes. Independentemente do tipo de leilão, todos possuíam o propósito de trazer modicidade tarifária, diversificação de fontes, segurança energética para o sistema e econômica (uma vez que a as longas durações de suprimento garantiam receita aos geradores). Além disso, foi um momento de expansão do acesso de energia para os mais desfavorecidos com o Programa Luz para todos.
O período Dilma de (2010-2016) foi marcado por pouca originalidade e mais pela continuidade e ampliação do que foi feito durante o governo anterior. Ainda assim, houve a promulgação da Medida Provisória no 579 em setembro de 2012, posteriormente transformada na Lei no 12.783/2013. Esse dispositivo legal possibilitou a prorrogação antecipada e onerosa de concessões de geração vincendas entre 2015 e 2017. Dessa forma, a garantia física dessas usinas seria convertida em cotas de energia e repassada de forma compulsória às empresas distribuidoras, e as tarifas passariam a representar apenas os custos de operação e manutenção das usinas. Como resultado, a MP no 579 promoveu uma grande e súbita realocação de riscos de mercado, entre empresas geradoras e distribuidoras, cabendo a estas últimas assumir e repassar aos consumidores os riscos hidrológicos das usinas cujas cotas assumiam. Esta MP até hoje é alvo de críticas e vinculada aos efeitos sentidos pela crise hídrica de 2013, podendo-se argumentar que este fato contribuiu para agravar a insatisfação popular e aumentar as pressões econômicas e políticas durante seu governo.
O governo Temer foi um governo de transição sem grandes mudanças estruturais no setor, mas plantou sementes através da ampla discussão com a sociedade no âmbito da Consulta Pública n° 33/2017, que nos anos seguintes se desdobraram em várias iniciativas legislativas e regulatórias para reformas do modelo, principalmente e já no governo Bolsonaro, com as Leis 14.120/2021 e 14.300/2022. A Lei nº 14.120/2021 aprimorou o modelo do setor elétrico ao fortalecer o acesso ao mercado livre de energia através de aprimoramentos legais à comercialização varejista e estabelecer o phase-out dos subsídios à energia incentivada. Já a Lei nº 14.300/2022 criou o Marco Legal da Geração Distribuída (GD), após longa, acalorada e midiática discussão. Com discussões iniciadas na era Temer, o governo Bolsonaro também foi marcado pela concretização da privatização da Eletrobras na Lei n° 14.182/2021.
Lula voltou ao poder em 2023 e já se fala sobre uma nova e ampla reforma, pois esse seu terceiro governo se depara com um momento crucial do setor elétrico. Um Brasil consequência de sua história, com sobre oferta de geração e falta de capacidade no horário de ponta, contratos de longo prazo ainda nas mãos das distribuidoras, concessões perto do fim, ampliação do mercado livre de energia, crescimento desenfreado da GD entre tantos outros. Entender onde estamos, passa por entender de onde viemos. Neste contexto, é possível perceber que desde a primeira lâmpada que se acendeu nesse país, o estado, representado de diferentes formas e regimes, estava à frente do setor. Um estado movido por crises políticas e econômicas que, de mãos dadas com os vários lobbies, teima em alocar riscos e custos no consumidor. Será que a nossa história nos ensinou alguma coisa? Ou será que essa nova reforma proposta será mais uma repetição da velha agenda de dos “cercadinhos”?
*Luan é engenheiro eletricista pela Universidade Federal de Itajubá, analista de energia e aluno da Head Energia.
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