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Alessandra Corrêa

Conflito de Interesse não é (apenas) uma questão de caráter


Algumas informações para melhor entendermos e

algumas dicas de como lidar com esse assunto tão importante.


Em 2004, a Suprema Corte dos EUA estava julgando o caso Cheney versus U.S. District Court for D.C. A questão central desse caso era se o então vice-presidente americano, Dick Cheney, deveria ou não ter a obrigação de fornecer informações sobre a força-tarefa liderada por ele sobre a regulamentação do setor elétrico. Acontece que um dos juízes da Suprema Corte, Antonin Scalia, era parceiro de golfe de Cheney. Uma entidade ambiental, Sierra Club Foundation, pediu para que o juiz se afastasse do caso alegando que a amizade entre os dois poderia prejudicar a objetividade de Scalia. A resposta dada pelo juiz é emblemática e, tenho certeza, muitos de nós já ouvimos ou já demos alguma versão dela: “Se for razoável pensar que um juiz da Suprema Corte pode ser comprado tão barato, a nação está em apuros mais profundos do que eu imaginava”.


Como o exemplo do juiz Scalia mostra, a questão do conflito de interesse muitas vezes é interpretada de formas diferentes. É muito comum não darmos importância e atenção a questões de conflito de interesse por praticidade. Quantas vezes não contratamos aquele nosso amigo ou parente porque ele vai fazer um preço mais camarada ou por ele ser de confiança? Assim como o juiz Scalia, vemos o conflito de interesses como uma questão de pequena relevância e relacionada a caráter e acreditamos que a escolha em agir ou não de forma ética é puramente racional.


Um volume cada vez maior de pesquisas sobre ética comportamental mostra que em situações de conflito de interesse, diversos processos psicológicos levam pessoas bem-intencionadas a se comportarem de forma antiética. Não apenas isso, mas esses processos também afetam pessoas que presenciam comportamentos antiéticos, levando-as a não notarem ou ignorarem tal tipo de comportamento. Esse fenômeno é conhecido como eticidade limitada (bounded ethicality) e se aplica a todos nós.

Entender melhor os mecanismos que levam a maus comportamentos diante de situações de conflitos de interesse, pode ajudar a dar mais importância e a tratar desse assunto de forma mais objetiva e eficiente.


Outra questão importante, e um fator que dificulta os diálogos sobre o tema, é que é muito mais difícil reconhecermos situações em que nós mesmos estamos conflitados. É mais fácil perceber quando outras pessoas estão em situação de conflito de interesse.


Em 1979 o pesquisador Ulric Neissen realizou um experimento que se tornou famoso – e de que muitos de nós já participamos em cursos e MBAs – e que prova o quanto nosso foco afeta nossa percepção. Ele pediu para que um grupo de alunos universitários assistisse a um vídeo que mostrava a superposição de dois grupos de jogadores, um usando camisetas brancas e o outro usando camisetas pretas. Os alunos deveriam contar o número de vezes que o grupo que usava camisetas pretas passava a bola entre si. (Se você ainda não participou desse exercício e quiser fazer esse divertido teste, pause a leitura e acesse o link: https://youtu.be/nkn3wRyb9Bk?si=XCXfYhBB50DhB6hC ) O fato de os alunos estarem com a atenção voltada para a contagem do número de passes fez com que 79% não percebesse que uma mulher carregando um guarda-chuva passou por entre os jogadores. A conclusão é de que ao focar em uma tarefa, os alunos não perceberam uma informação óbvia e acessível ao campo de visão deles.


O fenômeno observado no experimento, antes conhecido como “cegueira inatencional” (inattentional blindness), é hoje chamado de “conscientização limitada” (bounded awareness), porque ele abrange o fato de que também deixamos de perceber informações não visuais. Isso quer dizer que nós deixamos de perceber informações ou a necessidade de buscarmos informações que muitas vezes são cruciais para uma boa tomada de decisão. Alguns processos da “conscientização limitada” nos levam a ignorar comportamentos antiéticos de outras pessoas. São eles: viés de resultado, slippery slope, cegueira motivada e cegueira indireta.


Viés de Resultado é a nossa tendência a supervalorizar informações sobre o resultado. Ele nos leva a cometer diversas falhas no processo de tomada de decisão:


  • O desejo por determinado resultado influencia nosso julgamento e, consequentemente nossas decisões.

  • Nós também somos menos propensos a condenar comportamentos antiéticos quando eles levam a resultados favoráveis. Isto é, ignoramos bons processos decisórios em prol de bons resultados.

  • O outro lado é que nós temos a tendência de condenar pessoas que prezam por um bom processo decisório ou por tomarem decisões sensatas que levem a resultados não tão favoráveis.

  • Quando há uma ou mais vítimas identificadas, há uma tendência a um julgamento mais severo. Por outro lado, quando o número de vítimas é tal que viram um grupo de anônimos, o julgamento tende a ser mais brando.

  • Temos a tendência de julgar um comportamento como mais ou menos ético com base no resultado que ele provê.


O que os pesquisadores chamam de “slippery slope” é a mudança gradual no comportamento dos outros. Quando comportamentos antiéticos são adquiridos aos poucos, temos a tendência de não notarmos essa erosão na ética dos atos daqueles que nos cercam.


Pesquisas relacionadas a esse tema mostram que quando a decisão a ser tomada está em conflito com o interesse da pessoa que toma a decisão, as pessoas tendem a racionalizar a decisão antiética que as favorece para manter sua autoimagem de pessoas éticas e morais.


Nós temos a tendência de ver informações que corroboram nosso ponto de vista e de ignorar ou não ver informações que contradizem o que pensamos. Muitas pesquisas mostram que mesmo profissionais treinados e com conhecimento estão suscetíveis a esse viés. Essas pesquisas também mostram que a cegueira motivada não é consciente e que todos estamos sujeitos a esse viés, mesmo pessoas bem-intencionadas. Esse fenômeno tem o nome de cegueira motivada.


E, por fim, a cegueira indireta nos leva a ser menos severos nos julgamentos de comportamentos antiéticos que sejam cometidos através de terceiros. Isto é, quando uma pessoa age, ela mesma, de forma antiética é julgada de forma mais severa do que quando ela transfere a ação antiética para uma outra pessoa.


Outro aspecto da cegueira indireta é que julgar duas ou mais ações ao mesmo tempo leva a julgamentos mais racionais do que quando se julga uma ação isoladamente.

Há muitos motivos para evitarmos ao máximo situações de conflitos de interesse em nossos contratos, acordos e contratações. A questão é: Como? A pesquisa comportamental não traz receitas, mas nos dá boas dicas.


Garantir condições para um bom processo decisório é fundamental.


Muitos conhecemos os dois sistemas de nosso funcionamento cognitivo. O Sistema 1 é o mais utilizado, ele é automático, rápido, emocional e nos demanda menos esforço. O Sistema 2 é mais lento, consciente, racional e nos demanda mais esforço. Uma das formas de garantirmos um bom processo decisório e nos afastarmos dos vieses e heurísticas a que estamos sujeitos é nos treinarmos para sair do Sistema 1 e ir para o Sistema 2. Nem sempre é fácil, mas reservar tempo para tomar decisões, conferir se estamos considerando diversos pontos de vista, se estamos fazendo as perguntas corretas, se estamos deixando alguma informação de lado.


Uma outra dica que a pesquisa em ética comportamental nos traz é a do que ficou conhecido como “nudge”, aquele empurrãozinho na direção correta. Os incentivos presentes nos contratos e diretrizes estão alinhados com os objetivos? Eles ajudam a prevenir situações de conflito de interesse? Ajudam a prevenir situações de comportamentos antiéticos em geral?


Ao fazer contratações, montar acordos e contratos ou ao modificar os já em vigor, é importante nos atentarmos para a presença de ou abertura para que situações de conflito de interesse se instalem. Assim como com as tentações, é mais fácil evitar conflito de interesse e vieses cognitivos do que resistir a eles.

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