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Victor Ribeiro

Blecautes na Califórnia: lições para o planejamento, a operação e a regulação das renováveis

Atualizado: 5 de abr. de 2022



Em setembro de 2020, os jornais anunciaram que governador da California abrandou as regras de poluição do ar para permitir o uso de geradores portáteis ou motores de navio movidos a combustíveis fósseis para aumentar a geração de energia elétrica [1].


A manchete, embora verídica, parece ter saído da seção de anedotas tendo em vista que a California persegue metas agressivas de penetração de energia renovável no mundo: 33% até 2020; 50% em 2025; 60% em 2030 até alcançar a totalidade do fornecimento por fontes renováveis no ano de 2045.


A sugestão dada pelas autoridades locais para que as pessoas utilizassem geradores portáteis teve o objetivo de evitar que a série de blecautes no estado, ocorrida entre os dias 14/08 e 19/08, voltasse a acontecer no feriado prolongado do dia do trabalhador.


No primeiro dia de interrupção de fornecimento, cerca de 500 mil pessoas ficaram sem energia na região norte e outras 250 mil na região sul do estado da California. E como as falhas de fornecimento se estenderam nos dias seguintes, as estimativas preliminares é de que cerca de 3,3 milhões de pessoas tenham ficado sem energia elétrica. Abaixo um mapa das localidades dos casos de interrupção de fornecimento [2].

O operador do sistema da California (CAISO) temia que os desligamentos voltassem no feriado prolongado do dia do trabalhador, entre os dias 4 e 7/9, e estabeleceu o Estágio 2 de Emergência - apenas um nível antes de implementar cortes de energia em todo o estado - pois havia uma expectativa de um déficit entre geração e consumo de 4.400 megawatts. Por meio de um grande esforço de coordenação com agentes de geração, transmissão e consumidores que reduziram o consumo nos horários críticos, a California esquivou-se de mais um blecaute [3].


O que nos desperta mais atenção nesses eventos é que a California, assim como os demais estados norte-americanos, adotam o critério de suprimento denominado de “1 em 10”, ou seja, o sistema elétrico é planejado para ter folgas na geração e transmissão para que ocorra, no máximo, o equivalente a 1 dia (24 horas) de blecautes ao longo de 10 anos. Porém, não é isso que tem sido percebido: desde o ano de 2017 tem sido constatado um aumento das interrupções conforme poderá ser verificado no link do mapa interativo abaixo [4].



Embora ainda não tenhamos os números consolidados com os mencionados desligamentos ocorridos em 2020, podemos afirmar, com certo grau de certeza, que quando computarem as interrupções de fornecimento dos dias 14/08 a 19/08 e somados aos eventos passados desde 2017, certamente o critério “1 em 10” foi violado em menos de 4 anos o que deveria ocorrer no máximo, ao longo de uma década.


É público e notório que a California passa por momentos inusitados cujos modelos de previsão de consumo e geração não são capazes de predizer: os incêndios, as ondas de calor e a mudança no padrão de consumo de eletricidade provocado pela pandemia (mais pessoas em casa por mais tempo) trazem desafios para a operação do sistema. Foi justamente o que ocorreu no dia 14/08, quando a temperatura se realizou acima do previsto para o dia conforme pode ser visto no gráfico abaixo [5]:



Então, face aos fatos até então elencados, poderíamos depreender que os blecautes foram causados por uma “tempestade perfeita”? Em outras palavras, as ondas de calor, os incêndios, a mudança no padrão de consumo de energia elétrica foram as únicas causas dos blecautes?


Para responder essa pergunta, analisamos o histórico de operação no dia do desligamento e o planejamento da transmissão da CAISO dos últimos 5 anos [6] para averiguar se houve de fato uma tempestade perfeita ou se essa foi agravada por um erro de planejamento do sistema elétrico californiano.


Iniciemos com a reconstituição dos eventos que precederam o desligamento de 14/08. A tabela abaixo ilustra os horários e os principais eventos e ações da CAISO.



A CAISO utiliza previsões de temperatura para estimar a carga no dia seguinte. E as atualiza a cada uma hora ao longo da operação em tempo real. A demanda de pico em 14/08 ocorreu às 17:55 em 46.721 MWh. A previsão feita no dia anterior para esse horário foi de 45,988 MW e atualizada na hora anterior para 46.526 MW [7].



Do quadro anterior exposto, podemos depreender que provavelmente o ordenamento de redução de 800 MW por meio de resposta da demanda não tenha se verificado (diante ao elevado calor, os consumidores negaram-se reduzir o consumo) e a reserva de contingência despachada horas antes não foi capaz de manter a demanda.


Após alguns dias, em 17/08, ocorreu o inverso: a previsão feita no dia anterior sugeria que a demanda máxima seria de 49.825 MW às 17:30h, porém, a previsão feita na hora anterior foi de 45.054 MW e demanda realizou-se em 44.948 MW.



A CAISO expôs em conferência que, se de fato a demanda máxima tivesse se verificado no patamar de 49.000 MW, não teria capacidade de atender considerando os recursos de geração disponíveis no momento (46.000 MW) como pode ser verificado no gráfico abaixo.



Cabe ressaltar que os períodos de demanda máxima costumam ocorrer no verão. A CAISO considera no seu planejamento o summer peak load de anos anteriores. A primeira pergunta que podemos fazer é se a demanda máxima verificada nos blecautes de 2020 foi muito diferente do summer peak load consideradas no planejamento da CAISO nos anos anteriores.


Como pode ser percebido na tabela abaixo, a demanda de pico antes dos blecautes não foram as maiores já registradas em anos anteriores e consideradas no planejamento.


Outro aspecto importante lembrar é o papel do mecanismo de resposta da demanda (DR) à disposição da CAISO que conta com cerca de 1 GW de DR “rápida” (que é despachada dentro de 30 minutos) e outros 800 MW de DR “lenta” (cuja resposta demora mais que 30 minutos). A DR “rápida” permite ao operador o tempo necessário para avaliar e re-despachar recursos para efetivamente reposicione o sistema dentro de 30 minutos após a primeira contingência. Não encontramos no histórico se o mecanismo de reação da demanda foi acionado na eventos de demanda máxima supracitos. Sabemos somente que no desligamento de 14/08, os 800 MW de DR “rápida” foram despachados, mal tal ação não foi suficiente para permitir a CAISO a recomposição da geração em tempo hábil.



Retornando à análise do histórico de demandas máximas ocorridas na CAISO, um aspecto nos desperta a atenção: o final do período da tarde tem se apresentado como um período crítico para a CAISO. Esse desafio operativo é um fenômeno relativamente novo e foi inicialmente constatado justamente na California devido à forte penetração de fortes renováveis intermitentes.


Isso se deve ao fato de a produção eólica cair rapidamente nas últimas três horas antes do fim do período da tarde, e a partir de então surge uma necessidade urgente de rampa – a necessidade de fontes de geração despacháveis (termelétricas de partida rápida) que compensem, com confiabilidade, a queda de produção da fonte solar. Elaboramos o gráfico abaixo à esquerda a partir dos dados de geração e demanda da CAISO do dia 17/08 apresentado anteriormente. Repare como a produção de energia pela fonte solar cai rapidamente no fim da tarde e exige uma retomada íngreme de geração entre 13.000 e 15.000 MW.



Tal fenômeno tem sido denominado como duck curve (curva do pato) O gráfico do lado direito representa a evolução da duck curve apresentada pela CAISO entre os anos 2015 e 2020.


Se o fenômeno da duck curve já era conhecido pelo CAISO desde o ano de 2015, e consequentemente, desde então já havia a percepção da necessidade de fontes despacháveis para compensar o rápido decréscimo de produção da fonte solar no fim da tarde, o planejamento da expansão da geração e transmissão não deveria orientar o incremento de fontes despacháveis?


Antes de passarmos à análise do planejamento da expansão da geração e transmissão elaborado pela CAISO nos anos anteriores, vale à pena apurarmos o seguinte: quais foram as fontes de geração que atenderam o summer peak load nesses últimos anos? Consultamos o histórico de operação da CAISO e encontramos os dados dos atendimentos á demanda máxima nos anos de 2018 a 2020 conforme tabela abaixo.



Basicamente, a divisão entre as fontes de geração no atendimento à maior demanda realizada no ano foi muito parecida. Surpreende um pouco a redução da geração renovável e o aumento da geração termelétrica. Isso significa que o planejamento da CAISO incorporou mais termelétricas visando lidar com a duck curve?


Na verdade, foi o contrário. A CAISO determinou, no ano de 2010, a desativação de 10.760 MW das seguintes termelétricas:

  1. Termelétricas que utilizam água do oceano para resfriamento (5.931 MW)

  2. Termelétricas com mais de 40 anos de operação (2.583 MW)

  3. Usina Nuclear de San Onofre (2.246 MW)

Daqueles 10.760 MW, 5.931 MW já foram desativados. Os 4.829 MW restantes estão previstos para serem retirados até o ano de 2024.


Cabe ressaltar que esse montante de termelétricas desmobilizadas não será reposto integralmente por fontes despacháveis. A EIA (Energy International Agency) fez um quadro comparativo entre as fontes desativadas e as substituições até o ano de 2019. Repare que próximo à região da California foram retiradas termelétricas a gás natural e de carvão e substituídas principalmente por fontes solar e eólica.



Cabe ressaltar que a CAISO elaborou, no ano de 2016, um estudo para analisar o risco da retirada desse volume substancial de termelétricas do sistema. O referido estudo, denominado de “Supplemental Sensitivity Analysis: Risks of early economic retirement of gas fleet” integrou o relatório de planejamento de 2016 e desde então vem sendo revisado e citado nos relatórios posteriores [7].


Foram simulados seis cenários de retirada de termelétricas considerando montantes entre 3.900 MW e 7800 MW conforme abaixo assinalado.


A conclusão do estudo foi de que a retirada de montantes acima de 2000 MW suscitaria o aumento do risco de desligamentos.



Diante o exposto, conclui-se que os seguintes fatores abaixo influenciaram os blecautes na Califórnia:


1) Sem dúvida, a onda de calor que atingiu a California, os incêndios e a mudança no padrão de consumo de energia elétrica devido à pandemia trouxeram condições adversas e imprevistas à operação do sistema. No entanto, depreende-se que tais fatores não foram uma “tempestade perfeita” pois os desligamentos poderiam ser mitigados ou até evitados se existissem a disponibilização de recursos termelétricos despacháveis. A desmobilização de cerca de 6 GW de termelétricas não foram substituídas por fontes despacháveis em nível adequado, fato que reduziu a flexibilidade operativa da CAISO;

2) A forte penetração da geração solar e a redução do montante de termelétricas disponíveis, aumentou a predisposição da California importar energia de outros estados. Porém, como também houve desmobilização de usinas termelétricas a gás natural e carvão nos estados vizinhos, reduziu-se a capacidade da importação atuar como um recurso de resposta rápida para evitar desligamentos na Califórnia;

3) A forte penetração da geração solar também reduziu a competividade das termelétricas a gás natural e carvão. Essas usinas estão participando menos dos despachos por oferta por não conseguirem darem lances competitivos e entrarem na ordem de mérito [9];

4) O relatório de análise de risco da desmobilização das termelétricas recomendou que a retirada dos montantes desses empreendimentos não deveria ser acima de 2000 MW a partir do ano de 2016 e desde que esse montante fosse substituído por fontes renováveis. Mesmo assim, a previsão da retirada de 4.829 MW até o ano de 2024 foram mantidas;

5) Os fatores 1) a 4) pressionaram o CAISO a usar o mecanismo de resposta da demanda como último recurso. No entanto, a Resposta da Demanda não é um substituto perfeito: diante ao forte calor, muito dos consumidores não reduziram o consumo de ar condicionado no momento crucial para evitar os desligamentos;

6) O Estado da Califórnia tem metas agressivas de descarbonização: 33% até 2020; 50% em 2025; 60% em 2030 e 100% em 2045. Com base na análise do histórico de operação e relatórios de planejamento, não seria exagero afirmar que existem indícios de que a Califórnia, no empenho de cumprir as metas de descarbonização, determinou o desmobilização de termelétricas sem analisar com cuidado os cenários mais gravosos da simulação das condições operativas - quando as termelétricas teriam o papel de garantir o sistema em situações de vulnerabilidade do sistema. A incorporação de um cenário próximo ao de “tempestade perfeita” nas simulações utilizadas nos relatórios de planejamento da CAISO do ano de 2010 determinaria o descomissionamento de quase 11 GW de termelétricas?



As vantagens e os benefícios das fontes renováveis são inquestionáveis e é fundamental investir e incentivar o aumento delas na matriz energética, fazendo um correto dimensionamento da demanda em médio e longo prazos e prevendo o uso de outras fontes, especialmente a termelétrica, para garantir o equilíbrio em situações previsíveis, porém inesperadas. Aparentemente, o estado da California percebeu isso tardiamente: após os desligamentos, foi determinada a suspendeu dos descomissionamento de 4 GW de termelétricas previstas para ocorrerem até o ano de 2024.


Situação parecida ocorreu na Alemanha, embora tenha tido causa distinta do caso recente da California: após o acidente de Fukushima (2011), o governo alemão decidiu fechar todas as 17 usinas nucleares existentes na Alemanha até o ano de 2022 e estabeleceu metas agressivas de participação renovável na geração de energia. As usinas nucleares foram substituídas por fontes renováveis, no entanto passaram a ser constantes o congestionamento das linhas de transmissão entre os subsistemas norte e sul alemão que provocaram redução da confiabilidade de fornecimento no atendimento ao pico de demanda. Diante disso, a Alemanha decidiu implantar um mecanismo de capacidade para garantir o suprimento nesses momentos de stress do seu sistema elétrico: a Reserva Estratégica.


Os editais de contratação de Reserva Estratégica na Alemanha determinam que as termelétricas possuam tempos de aceleração inferiores a 10 horas e a quantidade a ser contratada leva em conta simulações que consideram invernos extremos que levam a picos de carga simultâneos em diferentes pontos do sistema considerando cenários de redução ou ausência de importação de energia em países vizinhos, a variação da produção eólica e variação da resposta da demanda.


As experiências da California e da Alemanha são exemplos de que os requisitos para atendimento ao consumo deverão observar cada vez com mais atenção aspectos locacionais e que a confiabilidade e a segurança do suprimento exigem uma transição com equilíbrio entre fontes renováveis intermitentes e fontes despacháveis. Em ambos os casos houve um descuido em determinar o cenário crítico, o evento mais gravoso factível e realista, para o phase-out das termelétricas em operação. Embora digam que tenham ocorrido “tempestades perfeitas”, por outro lado podemos afirmar que as consequências dessas tempestades foram exacerbadas pela insuficiência de fontes despacháveis.


O Brasil, como outros países, está avançando na diversificação da matriz energética por meio do aumento do uso de fontes renováveis. Neste processo, como em todas as transformações estruturais, é fundamental uma profunda avaliação e planejamento de longo prazo considerando todos os cenários e variáveis que possam ameaçar a resiliência do sistema. É preciso prestar atenção à adequada equação entre a geração a partir de fontes renováveis, como solar e eólica que são as que mais crescem, mas também incluindo outras fontes para dar segurança ao abastecimento, não apenas para garantir a oferta num cenário de aumento de consumo, mas principalmente em casos de eventos climáticos ou outros incidentes que afetem o sistema.


Experiências como da California e da Alemanha nos trazem avisos e recados: é necessária atenção na determinação dos critérios de confiabilidade para determinar a contratação por capacidade, agora previsto pelo art 3º da Medida Provisória nª 998/2020 bem como na sugestão de desmobilização de empreendimentos de geração existentes.


No Plano Decenal 2029 está sendo considerado a desmobilização de 8,7 GW do atual parque termelétrico movido à óleo combustível e a carvão nacional. Os motivos alegados para a sugestão de desmobilização dessas usinas foram o fim dos contratos de compra e venda de energia e o envelhecimento das plantas, as quais segundo o plano seriam substituídas por novas termelétricas 100% flexíveis movidas a Gás Natural. Tal recomendação tem sido feita antes do estabelecimento do critério de confiabilidade para a contratação de capacidade.




Fontes utilizadas nesse artigo:












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