Por Luan Vieira*
Graciliano Ramos (1892-1953) foi um grande escritor brasileiro, pertencente à segunda fase do modernismo. Nascido no interior de Alagoas, teve como sua obra principal e mais famosa o romance "Vidas Secas". Nele, retrata a “secura” da vida através de Fabiano e sua família pobre no sertão nordestino. O que sempre me chamou atenção na escrita de Graciliano é sua capacidade de retratar a vida de forma crua e realista, sem floreios, mas passando exatamente nas linhas do papel o sentimento que o leitor deveria sentir ao lê-lo.
Na obra "Vidas Secas", as frases são áridas, os personagens sem profundidade, dando a impressão de que não se está lendo um livro, mas está imerso no sertão. Assim também é minha obra de favoritismo, "Angústia", um romance circular, em que ao lê-lo do começo ao fim, sentimos a angústia do personagem principal, Luís da Silva.
Lembrei de tudo isso, não por acaso, pois no dia 09 de abril de 2024 foi publicada a REN 1.085 (Resolução Normativa) a qual trata da participação de empreendimentos hidrelétricos não despachados no MRE (Mecanismo de Realocação de Energia). Quando me deparei com a REN, fui acometido exatamente pelo mesmo sentimento que tive enquanto lia "Angústia" de Graciliano Ramos. E ao final, ecoou em minha cabeça uma frase muito deprimente de Fabiano: "De que adianta pensar? Pensar é triste. Triste pensar."
A 1.085 altera a REN 1033/2022 e determina que a partir de maio de 2025 haverá a aplicabilidade de um Fator de Contribuição ao MRE (FCM) para empreendimentos hidrelétricos não despachados centralizadamente. Esse fator pode ser aplicado para calcular a Garantia Física Apurada para fins de MRE (GFa) e depende de um valor de referência FG (Fator de Geração), que corresponde à razão entre a geração média de energia e as garantias físicas das usinas hidrelétricas despachadas centralizadamente participantes do MRE. O FG possui um valor para cada janela de número de meses em operação comercial. Ou seja, se a usina afetada pela 1.085 cumprir o requisito mínimo de geração previsto na REN, não sofrerá o efeito da aplicação do FCM, caso contrário, a nova GFa será justamente a Garantia Física vigente multiplicada pelo FCM.
A angústia de Luís da Silva nada mais é do que um estado de aflição profunda, causada geralmente pela sensação de que nada faz sentido ou de que se está perdido e não há perspectiva de melhora. No caso do MRE, é possível encontrar essa mesma angústia e de longa data. Pois, quem é mais antigo no setor sabe, o MRE foi criado em um contexto muito diferente, em que as hidrelétricas representavam quase toda a matriz elétrica brasileira.
À medida que a diversificação da matriz foi ocorrendo, paralelamente, ocorreram mudanças climáticas e estruturais no Brasil, culminando em um MRE cada vez mais problemático. De lá para cá, muita coisa aconteceu: crises hídricas, judicialização, inadimplência na CCEE, liminares, repactuação do risco hidrológico parte 1 e 2, extensão de outorgas e muito mais. A verdade é que para explicar cada crise e desfecho do MRE seria necessário um livro e não um artigo. Para entender melhor o funcionamento e os problemas do MRE, recomendo a leitura de outros artigos de minha autoria, bem como a trilha de geração aqui da Head Energia.
O importante, neste momento, é entender que o problema do MRE não é de agora e que houve diversos embates para tentar solucioná-lo, mas não solucionou. Neste sentido, a REN 1.085/2024 é mais uma tentativa de melhorar o mecanismo. Teoricamente, com o ajuste da GFa de acordo com sua performance, as usinas que estão recebendo continuamente energia do mecanismo sem contribuir deixariam de pagar a TEO (Tarifa de Energia de Otimização) dentro do mecanismo, para pagar o PLD (Preço de Liquidação das Diferenças). Isso faria com que o GSF fosse mais realista, é verdade, mas ao mesmo tempo exporia as não despacháveis ao risco de mercado.
O gerador hidrelétrico não despachável poderá ainda optar por uma metodologia alternativa de cálculo do GFa, uma vez que realize a instalação de um sistema que meça a indisponibilidade a partir da apuração da vazão vertida da usina. Esta alternativa permite que o gerador garanta que a GFa será calculada com base em sua indisponibilidade descontando a vazão vertida, podendo deixar o GFa melhor se comparado com a primeira metodologia. Por fim, a REN determina que a CCEE realize a adequação das regras em até 90 (noventa) dias após a publicação desta resolução. No entanto, ainda ficam muitas questões em aberto, por exemplo, como será operacionalizado esse sistema de medição, como será feita a sazonalização da Garantia Física para fins de MRE ou se criarão um novo GSF considerando o GFa.
Além destas questões menores e operacionais dependentes da regra escrita pela CCEE, meu espanto principal é o possível enorme descolamento que pode haver entre a GFa e a Garantia Física para fins de lastro (GF_lastro). Todos sabem que tem muita usina operando muito aquém de sua capacidade. A GF_lastro não poderá ser revisada, pois a própria REN 1.085 determina que o cálculo do FCM não poderá alterá-la. Porém, conceitualmente, a GF_lastro deveria ser uma representação da capacidade das usinas gerarem, considerando a metodologia vigente. Neste sentido, a determinação de uma GF_lastro permite ao gerador ter uma previsibilidade daquilo que ele possa comercializar no longo prazo. Porém, se o FCM, vinculado à performance, demonstra que a usina está aquém de sua capacidade, não deveria sua garantia física ser revisada?
Ademais, como já foi citado anteriormente, a 1.085 é específica para empreendimentos não despacháveis. No entanto, os empreendimentos despacháveis também possuem problemas de performance, seja por deslocamento hidráulico, condições meteorológicas ou assoreamento natural. Mas, essa REN não trata deles e a perspectiva é que tudo permaneça como está. Pois, a última vez que mexeram com as grandes usinas hidrelétricas, ou com GF_lastro, começou uma das maiores, se não a maior, crise do setor. Então, mesmo com a nova REN, no fim do dia, os problemas continuam. Para os mais pessimistas, até pioram, pois os fenômenos climáticos extremos como os que ocorreram no Rio Grande do Sul este ano, podem se tornar cada vez mais recorrentes e impactar diretamente a performance de usinas hidrelétricas ao longo dos anos.
Dito isso, se você não sentiu angústia com tantas incertezas em jogo, eu não sei o que fará. Neste contexto, acredito que a frase de Fabiano é uma variação do ditado popular “A ignorância é uma benção”. Ignorar o que acontece pode te colocar em uma situação confortável de esperança. Enquanto o conhecimento, neste caso, o pensamento crítico, pode te levar a uma completa desilusão e até mesmo uma sensação de desamparo. Pois, o papel do Estado seria justamente prover o amparo de uma vida com dignidade humana para todos, garantindo, sobretudo, a justiça dos direitos individuais e coletivos, inclusive no mercado (qualquer mercado que seja). Entretanto, na vida prática, o Estado intervém para perpetuar-se no poder, mesmo que isso signifique criar distorções bilionárias de mercado, como a do MRE. Então, é impossível ao refletir sobre isso não encontrar ressonância na angústia de Luís e no ceticismo de Fabiano, "De que adianta pensar? Pensar é triste. Triste pensar."
*Luan é engenheiro eletricista pela Universidade Federal de Itajubá, analista de energia e aluno da Head Energia.
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