Por Victor Ribeiro da Thymos Energia
Daniel Yergin, em seu livro mais recente “The new map” expõe seu ponto de vista sobre o surgimento de um novo mapa global que está sendo moldado pelas mudanças dramáticas na geopolítica e na energia. Na visão de Yergin, diferentes tipos de poder estão em jogo: um deles é o poder das nações que é moldado pela economia, capacidades militares e geografia. Outro tipo de poder é o proveniente da energia que vem do petróleo, gás, carvão, sol; da água e da divisão dos átomos. E, por fim, um novo tipo de poder que emanará em função do reordenamento do sistema energético mundial promovido pela transição energética e do net zero, que estabelece metas para a redução de emissões líquidas de CO2 visando limitar o aumento médio de temperatura do planeta em 1,5ºC em relação à temperatura da era pré-industrial para evitar o chamado tipping point, o momento em que os efeitos das mudanças climáticas assumem efeitos irreversíveis e imprevisíveis.
O ponto de vista trazido por Yergin levaram-me a algumas reflexões: como esse “novo mapa” se desdobrará para as economias e para a vida das pessoas? Arrisco um esboço de resposta dividindo-a em três partes (ou em três desafios para compreensão).
O primeiro desafio em responder à pergunta é com relação ao fato de que o conceito de transição energética pode ter significados distintos, onde cada país tem uma compreensão própria, especialmente nos países em desenvolvimento, onde um bilhão de pessoas não tem acesso à eletricidade e três bilhões não têm acesso à combustíveis seguros para cozinhar. Por exemplo, na Índia, o termo “transição energética” tem múltiplas dimensões: desde a transição para sair da pobreza e substituir os fogões de chulha que poluem as residências com gases nocivos até a implantação de políticas da substituição do diesel por gás natural comprimido como combustível em carros e caminhões leves para reduzir a poluição urbana. Tal política tem o potencial de transformar a índia em um dos maiores consumidores de GNL (Gas Natural Liquefeito) no mercado global. Por sua vez, do outro lado do espectro, encontram-se países como Austrália, China e EUA que não assinaram compromissos para eliminar o uso de carvão nas próximas décadas: esses países estão adotando um caminho próprio, diferente do Acordo de Paris, tal como comentado no artigo anterior dessa coluna1. A título ilustrativo, a China, o país com maior emissão de CO2 do planeta, tem como meta antecipar o pico de emissões para o ano de 2030 e o objetivo de alcançar a neutralidade de carbono em 2060. Para isso, planeja a implantação de usinas nucleares e não renunciará por completo as usinas termelétricas movidas a carvão, as quais passarão a contar com a tecnologia de Carbon Capture Utilisation and Storage (CCUS) que reduzem até 90% da emissão de CO2.
O segundo desafio em responder à pergunta está relacionado com os diferentes níveis de expectativa com relação à transição energética, as quais variam desde um otimismo realista até a uma ingenuidade imodesta. O otimismo realista refere-se à tendência natural de empolgação diante a perspectiva de uma nova ideia (no caso em tela, a própria transição energética) ou às novas tecnologias de geração (como por exemplo, o hidrogênio verde). Ou seja, é normal a tendência de haver um otimismo realista com relação, por exemplo, à expectativa de o hidrogênio verde, até o ano de 2050, proporcionar uma verdadeira reglobalização mudando a estrutura de dependência dos países produtores de combustíveis fósseis. Porém, por outro lado, caracteriza-se como uma ingenuidade imodesta acreditar na substituição massiva do uso dos combustíveis fósseis no horizonte de uma década.
Não à toa, relatórios da Agência Internacional de Energia (IEA) reconhecem a necessidade da operação de termelétricas até o ano 2050 para manter a confiabilidade de sistemas elétricos: países competem por maior espaço no mercado global e a segurança e a confiabilidade energética e elétrica é um fator fundamental para se manter no jogo. Até o momento, as fontes renováveis intermitentes como a solar e a eólica não garante per si o nível de segurança e confiabilidade para manter o crescimento econômico figurando como fontes majoritárias. Por ora, alguns serviços voltados para prover
confiabilidade ao sistema elétrico só podem ser oferecidos por fontes despacháveis movidas a combustíveis fósseis de maneira efetiva e ao menor custo para os consumidores de energia elétrica.
E por fim, o terceiro desafio em responder à pergunta é lidar com o imponderável. Para compreender o seu efeito basta vermos eventos recentes que refutaram a intuição inicial de imaginar que haveria uma queda persistente dos preços dos combustíveis e insumos energéticos ao longo da pandemia do coronavírus devido à retração econômica. Foi justamente o efeito contrário que presenciamos: a pandemia provocou interrupções de produção, gargalos de abastecimento, escassez, aumento de demanda, e consequentemente, preços de gás natural batendo recordes. Também presenciamos a atividade econômica na China sendo paralisada devido a crises de abastecimento de carvão; bancos centrais e formuladores de política ao redor do mundo sendo forçados a lidar com a instabilidade de preços para proteger cidadãos e empresas.
Daí depreende-se que o imponderável costuma ofender mais à ingenuidade imodesta do que ao otimismo realista. Um pensamento típico do primeiro é acreditar que a produção doméstica de energia renovável reduzirá a dependência de outros países e eliminará a dependência dos combustíveis fósseis. Nesse aspecto, o dilema europeu em relação ao abastecimento de gás natural proveniente da Rússia é particularmente instrutivo: a Comissão Europeia vai propor um sistema para que os países da União Europeia comprem gás em conjunto para formar reservas estratégicas. A medida é para lidar com o aumento de preços de gás natural e a dependência da Rússia, responsável pelo suprimento de 50% do gás natural consumido na Europa.
A lição a ser aprendida é que a transição energética não significa independência energética. Um exemplo é a dependência crescente do mercado global da produção de minerais na China que vem passando praticamente despercebida pelos radares da maioria dos países líderes na transição energética. A título de exemplo, a tabela abaixo apenas lista os minerais em que a China se encontra entre os três maiores produtores mundiais.
Trazendo a reflexão para o contexto aqui do Brasil, o tema reforça a necessidade de se aprender com a experiência internacional e compreender que transição energética deve ser objetivo de planejamento de longo prazo com uma pitada de otimismo realista e para isso é necessário não haver demonização de fontes de energia, políticas e alternativas.
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