A separação lastro e energia é um dos temas mais comentados no âmbito da modernização do setor elétrico. As bases para sua implementação estão no Projeto de Lei 414/2021, que atualmente tramita na Câmara dos Deputados. O detalhamento da separação está no Artigo 5º do PL, que modifica vários pontos da Lei 10.848/2004 (sobretudo o Artigo 3º e cria outros novos artigos: 3º-A, 3º-C e 3º-D). Mas, afinal, quais as razões para a proposição dessa separação entre lastro e energia?
Iniciativas para revisão do modelo do setor elétrico brasileiro vêm acontecendo há, pelo menos, 6 anos – seja por movimentos liderados pelos agentes de mercado, pelo Poder Legislativo e pelo próprio Poder Executivo. Do lado do Legislativo, podemos citar o PL 1917/2015, o PLS 232/2016 e, mais recentemente, o PL 414/2021. O carro chefe dessas propostas é o mesmo: a abertura integral do mercado, permitindo que todos os consumidores possam escolher seu supridor de energia.
Mas o que a separação lastro e energia tem a ver com a abertura do mercado? Ao abrir o mercado, alguns fenômenos podem acontecer, em maior ou menor grau:
Efeitos sobre os portfólios das distribuidoras: que compram energia em nome de um consumidor que no futuro pode não estar mais na sua base, elevando o risco de sobrecontratação.
Efeitos sobre a tarifa dos consumidores que optarem por não migrar ou que não possam migrar (caso dos consumidores de Baixa Renda): o atual modelo de contratação de usinas termelétricas no Brasil é viabilizado por meio de contratos por disponibilidade, em que o empreendedor recebe uma receita fixa e se compromete a manter a usina disponível. Esses contratos só se viabilizam no Ambiente de Contratação Regulada, pois suas especificidades os tornam não atrativos para o mercado livre. Ocorre que a segurança proporcionada pela adição estrutural de usinas termelétricas ao sistema é um “bem comum”, ou seja, todos os consumidores se beneficiam desse benefício.
Efeitos sobre a política energética: o Estado pode perder o controle sobre quais tipos de fontes serão adicionadas ao sistema – hoje esse controle é feito por meio dos leilões para atendimento do ambiente regulado. Se, no limite, todos os consumidores migrarem, não haverá mais leilões no ACR e a política energética ficaria a cargo das decisões de expansão voltadas ao mercado livre.
O remédio que o PL 414/2021 traz para os potenciais efeitos colaterais da abertura do mercado é a separação lastro e energia. Seu principal objetivo é garantir a adequação do suprimento concomitantemente à liberalização do mercado. O conceito é contratar a capacidade de novas usinas em leilões centralizados regulados (leilões de lastro), com os custos de aquisição divididos entre todos os consumidores (regulados e livres).
Dessa forma, ficaria garantido o controle da política energética pelo Estado, que utilizaria esses leilões como ferramenta de definição da matriz elétrica e da adequação de suprimento. A energia, por sua vez, continuaria sendo contratada das mesmas formas atuais: via leilões regulados para as distribuidoras ou livremente no mercado, pelos demais agentes.
Embora em teoria essa proposta possa funcionar, há ainda muitos pontos de atenção que precisam ser testados. Dentre eles, está a competitividade entre a energia antiga (pré-separação lastro e energia) e a nova, pois os geradores existentes continuariam a prover contratos consolidados (lastro + energia), enquanto as novas usinas proveriam energia separadamente do lastro.
Outro ponto de atenção é que o desenvolvimento de projetos voltados ao mercado livre estaria condicionado ao cronograma dos leilões de lastro, pois um projeto não poderia entrar no sistema sem antes passar por um desses leilões. O dinamismo que hoje se vê na expansão da geração viabilizada por contratos no mercado livre, poderia ser impactado.
Haveria uma solução alternativa a essa guinada que a separação lastro e energia causaria? Parece que sim, pois o mercado enxerga os leilões de reserva de capacidade como uma possível opção. Viabilizada pela Lei 14.120/2021 e regulamentada pelo Decreto 10.707/2021, a contratação de reserva de capacidade na forma de potência visa garantir o atendimento à demanda de potência e assegurar a continuidade do fornecimento.
Esses leilões podem ser um mecanismo eficiente para garantir adequação do suprimento, com custos rateados entre todos os consumidores – exatamente como previsto nos leilões de lastro do PL 414 – sem as perturbações que a separação entre lastro e energia poderia causar.
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